segunda-feira, 25 de julho de 2016

Aurora

Enquanto saia do templo, uma sensação de felicidade lhe invadia.

Esse não era o plano original. Lembrou do sorriso no rosto dele no dia em que se conheceram, mas nunca imaginou que aquele homem tão maravilhoso e atencioso, poderia se tornar seu pior inimigo. Queria apagar da sua vida aquela convivência de cinco anos, só queria esquecer. Talvez aquela grande quantidade de cicatrizes passariam despercebidas, e ela pudesse ser alguém novamente.

Com o corpo e a alma cheios de dor, depois de mais uma surra de cinco horas, consegue escapar com a filha para a casa de uma amiga. Antes, com ajuda de amigos, arruma um emprego em outro estado, passagens e coragem. Em seu último dia na cidade, depois de alguns meses escondida, decidiu ir encontrar o criador e agradecer a oportunidade de renascer. Deus era bom com ela.

Porém ao atravessar a rua, saindo da igreja, vê todos os seus novos sonhos desabarem.

Ele estava ali.


O medo aumentou consideravelmente, quando reluzindo a luz do sol, a pistola automática é destravada. A multidão se afasta, e muitos correm, mas ela continua ali. Ele começa a falar.


- Então você achou mesmo que ia fugir de mim, vadia? Achou mesmo que ia escapar levando minha filha? Você nunca prestou para nada, e agora faz isso comigo, por causa de algumas discussões? Eu vou dizer para você, para onde você vai agora vadia... você vai para o inferno!


Ela fecha os olhos. Pensou no futuro da menina, na tristeza da mãe ao saber daquela notícia futura. Não conseguia mais chorar, não tinha mais lágrimas. Talvez a felicidade seja algo que apenas alguns merecem, e que isso não tem nada a ver com bondade ou caráter. Se algum Deus existe, ele decidiu que ela não era importante. Bastava aceitar. Levanta o pescoço, olha ao redor, e espera... talvez fosse rápido, e diferente das surras, o momento de dor seria breve.

Mas algo de inesperado acontece e a multidão desenfreada, vai para cima do homem.

Um tumulto generalizado se instala no local e alguns tiros são dados para cima, mas ninguém é ferido. Logo, alguns homens que saiam do templo, imobilizam seu antigo companheiro. O povo começa uma série de agressões que é interrompida por um advogado, que disse que o sujeito poderia usar o fato para se livrar e que o melhor era chamar a polícia e esperar. Todos acatam.

A viatura chega ao local, e o homem é detido. Ela pede ao policial um instante.

Abre a bolsa e pega uma aliança. Coloca no bolso da camisa daquele ser humano que um dia amou. Virando as costas, retornou ao templo. Precisava agradecer o criador, pois além de ir embora, agora sabia que estava segura.


Deus era bom com ela. Ela também merecia ser feliz.

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Saudosismo canceriano.


No meio da noite me levantei para ir no banheiro. Minha filha aproveitou e me pediu algo pra beber. Assim que ela tomou seu chocolate quente, ambos nos deitamos, mas enquanto ela dormia, eu permaneci acordado. Era estranho acordar e perder o sono, visto o cansaço que eu estava por causa desses últimos dias de trabalho. Enquanto uns tomam leite, contam carneiros, ou vão ler algo chato, meu método para driblar a insónia consiste em pensar e enumerar coisas do passado. Uma mania minha, coisa de canceriano.

Primeiro penso nos relacionamentos. Lembro o ano e uma música que marcou aquela fase, e relembro os acontecimentos da época. Faço uma reflexão de quem eu era e quem sou hoje, e vejo como eu mudei, tanto na forma de pensar como a de agir. Acho interessante perceber nossa vida dessa maneira, como se fosse um seriado, com várias temporadas, porém se ver como um personagem de um longa, que nunca acaba.

O fato importante desses momentos de reflexão e que precisa ser constantemente lembrado, é a ideia de que cada pessoa que passa pela sua vida te ensina algo. Para mim essas lições, em forma de vivência, são a soma de uma equação, que resultaram no que eu sou hoje. Penso também nos amigos, nos empregos, nas viagens. Enumero tudo e penso logo em uma música para cada fase daquilo também. Eu sou uma pessoa que relaciona música como se fosse um marcador de página.

O sono ainda não tinha chegado, mas com todas essas lembranças apareceu uma percepção bacana:
Eu estou feliz.

Feliz porque acho que vivi o que tinha de viver. Porque consigo rir de mim quando lembro de alguma besteira que eu fiz. Feliz porque quando tive uma tristeza, valorizei algo importante. Feliz por que cada trabalho que eu tive, eu aprendi. Feliz porque encontrei uma coisa que nem todo mundo acha na vida, uma mulher que me completa. Uma amiga e uma amante. Alguém para acompanhar até o fim. E feliz porque temos agora uma extensão da nossa vida, em forma de sorrisos e travessuras. Um furacão de dois anos que destrói as casas por dentro, um objetivo de vida chamado Sophia. Estou feliz principalmente porque consigo pensar nisso em uma noite de insónia, em um período de duas horas, e saber que tem gente que passa uma vida inteira sem descobrir isso.

São quase quatro da matina e começo a bocejar. Fico com medo de levantar, pegar uma coisa pra comer e perder o sono novamente. Mesmo com fome me viro pra dormir. De qualquer maneira vou ter de começar um regime mesmo, porque todas essas vivências, além de reflexões, me trouxeram uns quilos a mais. Acho que todos os que escrevem tem uma certa dificuldade para acabar textos. Só posso dizer que naquela noite de insónia, eu acabei dormindo.

Feliz é claro.