quarta-feira, 16 de novembro de 2011

O formigueiro é humano

Outro dia uma senhora desabafou na fila de embarque do trem, sentido Conrinthians-Itaquera: “Esse metrô parece um formigueiro”.

  Para a linguagem popular, “formigueiro humano” é um lugar-comum; para seus milhões de usuários, o metrô de São Paulo é um lugar comum. Para mim, metrô e formigueiro têm mais em comum do que se pensa.

Alguns dias depois desse evento, parei para observar o vai-e-vem na estação Sé. Estava debruçado sobre o parapeito de concreto que circula o vão central. O sol da tarde se pusera; baforadas de vento desciam as escadarias e atravessavam as catracas assaltando os mal-agasalhados. Os radares descreviam uma sexta-feira de trânsito caótico e os termômetros anunciavam uma noite fria. Mas lá embaixo, nos vagões lotados, não havia espaço para o frio. Era horário de pico no formigueiro humano.

Todos os dias, 3,4 milhões de pessoas entram e saem dos vagões do metrô de São Paulo. São passageiros que correm e esbarram uns nos outros. Alguns deles abrem caminho na multidão a cotoveladas e precipitam-se para portas prestes a fechar. Crianças, mãos dadas aos pais, cambaleiam em meio à correnteza de pernas; outros, muito idosos, caminham encurvados na companhia de suas bengalas; alguns, em dupla, combatem o frio se amassando próximos a pilastras onde se lê o aviso: “área de embarque exclusivo para idosos”. Pela organização ou pela desordem: o formigueiro é humano.

Até o criativo Franz Kafka ficaria boquiaberto se presenciasse a metamorfose coletiva do metrô paulista. A certa altura da reflexão, lembrei-me do velho Bertold Brecht e seu clássico poema, “Se os tubarões fossem homens”. Então surgiu a dúvida inevitável: e se as formigas fossem homens?

Se as formigas fossem homens, cavariam imensos túneis, semelhantes aos primitivos formigueiros. A esses túneis dariam o nome de metrô. O metrô seria um importante meio de transporte para as formigas-estudantes, utilizado por algumas formigas-executivas, mas principalmente pelas formigas-operárias.

Se as formigas fossem homens, a tirania matriarcal das formigas-rainha estaria ameaçada. Claro que, por um princípio democrático, alguma delas teria que mandar nas demais. Caberia a essa formiga-governadora determinar quando é a hora de ampliar as linhas de metrô, embora se reconheça que formigas com vocação política pouco o utilizem.

Num gesto de civilidade, possível somente aos homens, as formigas aceitariam educadamente as condições precárias do metrô, apesar das disputas férreas travadas para ocupar os raros assentos vazios (nesse caso, vale até pisotear as patas traseiras de alguma semelhante). Afinal, isso seria compreensível, pois as formigas-operárias, famosas por sua força sobre-humana, carregam bolsas e mochilas pesadíssimas - como as que já se veem pelas estações pesando em ombros humanos.

Se as formigas fossem homens, enfim, raciocinariam. Portanto, teriam sentimentos os pequenos insetos. Algumas formigas, conscientes da própria miséria, fariam do metrô seu sepulcro, lançando-se desesperadas aos trilhos. Por questões de conveniência, algo tipicamente humano, uma voz soaria pelos alto-falantes dos vagões:

- “Paramos para retirada de objeto da linha”.



Um texto de Renan Xavier.
Ilustração : Novais